sexta-feira, 22 de maio de 2009

No Vôo do Fantasma: o Autor dentro e/ou fora do texto

Buscar relações e fundamentos para explicar a temática dos livros literários têm sido o grande auge de descobertas críticas até agora. Analisar a vida do autor e tentar cruzá-la com a dos personagens passou de prática crítica à teoria. No conto de Sérgio Sant’Anna intitulado “O Vôo da Madrugada” (2006), exibe-se uma atmosfera melancólica que pode estar associada ao fato de acontecimentos atribulados na vida do escritor no momento da criação do livro. Sant’Anna passava por três separações sequenciais. A difícil e nem sempre possível tarefa de definir se a literatura é ficção ou confissão, parte da idéia que cada vez mais – e novas – vozes autorais marginais emergem no texto afirmando-se como produtoras do discurso literário. Diante disso, criam-se três incógnitas no texto de Sant’Anna. A primeira é que, se ele vive as situações caracterizadas por ele como “sofrimento tão agudo” na vida real, e estaria materializando-as de forma mais amena, então a teoria da literatura como testemunho se concretiza. Porém, se as situações que ocorrem no conto partem da imaginação do autor, e ao passar para o papel ele estaria dando a ela uma existência, sugere que a vida do autor seja uma ficção e ele esteja na tentativa de ficcionalizar o real. E por fim, se mesclar as duas anteriores e analisar paralelo à sua idéia (“ora como agressor, ora como vítima”), ainda possibilita encadear uma terceira hipótese: ser o agressor é também a vítima é como presenciar o ‘ser e o não-ser’ no texto literário. Dessa forma torna-se possível fazer emergir os fantasmas, confrontá-los e superá-los no ato da criação do conto – é uma superação através da arte. Esse é o encanto que a Literatura lança em nós: leitores.

sábado, 16 de maio de 2009

A Causa Secreta do Machadão

Responsável por encaminhar o rumo da literatura brasileira por caminhos nunca antes navegados, Machado de Assis deixou sua marca em todos os gêneros literários – romancista, tradutor, poeta, dramaturgo, cronista, crítico literário, e como não bastasse, revelou-se também um extraordinário contista. Há quem afirme que Assis foi pioneiro na composição de histórias curtas, dando, segundo Afrânio Coutinho, uma especial atenção a temas como o sentimento trágico da existência, o pensamento pessimista e a inquietação metafísica.
Em seus contos, como em outros trabalhos literários, Machado deixa claro possuir total conhecimento dos acontecimentos de sua época, citando-os indiretamente como pano de fundo das histórias, mas criticando-os com tal responsabilidade e luxo, lançando a literatura brasileira ao cenário mundial com a etiqueta de seu nome. Tinha leituras e interesses em psicologia e psicanálise, como se pode ver em muitos de seus escritos. Concentrando a análise mais nos contos, é visível a crítica ao cientificismo da época sendo visto como senso comum em “O Alienista”, estendendo em romances como a tentativa de enriquecimento de Brás Cubas com um experimento científico, e pela interessante trama e enigma de “A Causa Secreta”. Esse último compõe uma coletânea de contos publicados em 1896, chamada “Várias Histórias”. É considerada uma de suas melhores publicações no gênero.
Muitos traços presentes no livro de contos “Várias Histórias” já eram observadas no romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). O nihilismo, o pessimismo materialista sempre lançando os personagens aos mais inusitados embaraços, em que ao que pareciam, eles mesmos os submetiam – esses traços eram igualmente vistos em terreno alemão, como os filósofos Schopenhauer e Nietzche. Estilos de escrita muito sofisticados como a onisciência e a polifonia garantem a Machado de Assis uma posição numa escala bem à frente de escritores de sua época, equiparando-se a, por exemplo, Dostoiévski.
Um dos mais brilhantes contos de Machado de Assis é a Causa Secreta, uma crítica pungente à caridade hipócrita e uma reflexão profunda sobre a obscuridade dos sentimentos. É uma história que aborda um tema oculto da alma do ser humano: a crueldade. Oculto porque diante da sociedade, principalmente da época em que é descrito, era totalmente inaceitável tal sentimento entre as pessoas do convívio, e se o possuíam, não podiam deixar transparecer tal efeito.
Em 3ª pessoa, o narrador onisciente constrói uma ilustre caracterização psicológica que revela o mais alto grau do prazer, através do personagem Fortunato, em contemplar a desgraça alheia. Através da trama é possível explicar com clareza o real significado do termo: sadismo. A estória inicia com uma quebra de tempo, é a narração de um fato ocorrido no final do conto, como que para que o leitor entende-se dali pra frente, era preciso retomar a história desde o princípio.
Machado de Assis revela-nos um cenário onde recém o formado médico Garcia conhece o espirituoso Fortunato, dono de uma misteriosa compaixão pelos doentes, apesar de não demonstrar certo afeto nem por sua esposa. Conta a história desses dois homens, que após um salvar a vida de outro, acabam por se tornar sócios. Mas aos poucos Fortunato demonstra ter desejos sádicos, torturando animais, fato que atordoa a esposa, mas que ele afirma ser para melhorar a habilidade da profissão. O conto revela a personalidade de um sádico, que até realiza “boas ações” desde que lhes ative o prazer. Quando sua esposa morre, ele presencia o beijo de Garcia na testa da mulher e o derreter-se em choro, saboreando a dor do amigo que lhe traía.
Através de uma linguagem bastante fácil, o que não é comum entre as obras de Machado, o autor mistura momentos de narração – terceira pessoa onisciente – com diálogos diretos, dando um aspecto mais real à história. Um conto naturalista, se é que se deve limitá-lo à “gavetas literárias” que se passa na burguesia, os personagens parecem ratos de laboratório, analogia bem explorada pelo autor na cena mais forte do texto aonde Fortunato tortura um rato lentamente, revelando o sadismo oculto até então, inclusive dos leitores.