domingo, 20 de setembro de 2009

"Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas,
um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens."
*João Guimarães Rosa?*

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Dez clássicos para reler

O que entendemos como um livro clássico? Este adjetivo descende do latim classis, frota, ordem. Chama-se de clássico um livro que “as gerações dos homens, urgidos por razões diversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade”, anotou Jorge Luis Borges. O clássico nos ensina algo universal que, de certa forma, nos liga a uma vivência particular. Reler o clássico é descobrir nas dobras da memória não só a história do passado mas sobretudo o enredo de um provável futuro das relações humanas.
“Ulisses”, romance-experiência de James Joyce, escrito entre 1914-1921, é uma obra fundamental da ficção do século XX. Joyce ousou inventar uma prosa-poética que ainda hoje é vista com estranhamento pelas cabeças normais do público leitor.
Outro clássico que se revela inédito a cada releitura é “Grande Sertão Veredas” (1956), de Guimarães Rosa. Este romance é o grande marco inovador na literatura brasileira de todos os tempos.
"Os Sertões”, de Euclides da Cunha, é um livro que nos ensina algo que não sabíamos, descobrimos nele algo que sempre soubéramos ou acreditávamos saber... Euclides, com sua escrita virtuosística, faz uma interpretação histórica do País a partir da cultura do sertão.
"Mé
mórias Póstumas de Brás Cubas” (1880), de Machado de Assis, é um exemplo de clássico que precisou de tempo para encontrar o seu lugar certo. O romance em forma de monólogo autobiográfico é um divisor na obra de Machado.
S
egundo Ezra Pound, mestres são os “homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores”. Franz Kafka é um dos mestres deste século, autor de “Metamorfose”, texto singular da literatura universal. O anti-herói Joseph K. nos leva a descobrir a história dos pesadelos do mundo moderno.
Outro livro que merece ser relido, (clássico é o livro que estamos sempre relendo...), é “As Mil e Uma Noites”, texto estabelecido a partir dos manuscritos originais por René R. Khawam.
“Eupalinos ou O arquiteto _ Escritos de circunstância” (1921), de Paul Valéry, reflete sobre o processo de criação arquitetônica. Valéry, poeta-crítico, cria um clássico a partir de um diálogo imaginário entre Sócrates e Fedro.
“Uma Temporada no Inferno & Iluminações”, de Arthur Rimbaud, inaugurou a literatura do desespero, do assombro, do inconformismo, da beleza perdida, do visível e do imaginário.
Virginia Woolf é conhecida sobretudo como uma romancista que aperfeiçoou modernas técnicas de narrar, como as do monólogo interior e do fluxo de consciência. “Orlando”, de Woolf, é o romance mais popular da escritora, mas o texto mais inovador e revolucionário em termos de forma é “As ondas”, em que o cotidiano dispensa enredo, ação, e surge de puras sensações.
Ou
tro clássico da literatura moderna é “O Estrangeiro”, de Albert Camus. O escritor franco-argelino explora os temas que sempre o atormentaram, como a solidão, o destino do homem diante do mundo indiferente e o absurdo da condição humana. Camus descreve a “doença do espírito” de que sofrem os tempos atuais.
Por Pedro Maciel - Cronópios

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O devir-lugar da onça: Meu Tio O Iauaretê

“Onça, jaguar, cangussu, pintada, pinima, pinima malha-larga, jaguaretê, jaguaretê-pixuna, pixuna, maçaroca, suassurana e tigre” são certamente referências-chave neste texto ao se tratar de um mesmo animal, mas que pode ser citado de inúmeras formas. Ela será representante de um momento na literatura onde a relação animal e humano toma outras direções. Esse momento exalta os valores dos que estão esquecidos em algum lugar do passado e são retomados, alheios à história cronológica, a qual deverá ser despedaçada por estes personagens e interrompida para que outras histórias apareçam, recordando o que diz Jeanne-Marie Gagnebin, “a história que se lembra do passado também é sempre escrita no presente e para o presente”.[...]O personagem do conto Meu Tio O Iauaretê é um homem que vira onça ao longo da história, vai se transformando à medida que vai conversando, e consequentemente, seu texto também vai se oncisando, com interjeições em tupi e grunhidos de animal. É um abandonado, um mestiço de branco com índia que foi deixado lá para “desonçar” o lugar, mas aos poucos ele foi se identificando com as onças e passou a não caçá-las mais, até se ver como uma. A metamorfose é visível na mudança progressiva de seu jeito de falar, cada vez com mais palavras e expressões tupi-guarani, como se da ‘roupa branca e civilizada’ materna, Macuncôzo fosse se despindo. O sobrinho-do-iauaretê é o retrato da indecibilidade entre humano e não-humano que há no mito. A literatura se apresenta, assim, como um gesto de indecidibilidade, pois esta não evolui linearmente: se bifurcam os caminhos e voltam a encontrar-se no tempo, ou nos vários tempos presentes num mesmo tempo. E essa indecibilidade tem lugar onde é possível parodiar suas formas sagradas e ultrapassar fronteiras temporais: na arte.[...]O conhecimento, a história, estão sob a máscara do mito, interpostos e ficcionalizados pela literatura. A relação que as obras literárias mantêm com a história tem tomado um novo interesse por parte da literatura atual. Linda Hutcheon chama essas obras literárias de “metaficções historiográficas”. Historiográficas, pois retomam um certo período, metaficções por ficcionalizar esse momento interpondo várias histórias e misturando-as; apontando o caráter ficcional da história. O resultado é, como já mencionado, um produto híbrido, que já não predomina um ou outro elemento, é uma confluência de caminhos, possibilidades de escolher. Ora, a arte não se define pela equivalência monumental, mas pela metamorfose. E transformar exige uma incisão, um corte na linha evolutiva, para que assim se torne possível a escritura bem ao gosto da literatura contemporânea, numa relação, segundo Hutcheon, “que é, ao mesmo tempo, intensamente auto-reflexiva e paródica, e mesmo assim procura firmar-se naquilo que constitui um entrave para a reflexividade e a paródia: o mundo histórico” . A história imprime seus vestígios nas coisas, da mesma forma que a onça sabe que onde há vestígios há possibilidades. Através dos vestígios, dos rastros, a arte capta uma origem vacilante, composta não apenas de história, mas também de toda lamentação dos esquecidos por ela. Assim, fundem-se o arcaico e o contemporâneo, num eterno retorno. Dessa forma evita-se a perda do mito, pois se este está constantemente sendo revisitado, ele se mantém na sobrevivência, na catástrofe. [...]A poesia é o espaço onde esse discurso animal tem lugar, ela permite que o leitor olhe do ponto de vista do animal, para causar dúvida, crise, e re-ver sempre. Como já dito, o lugar é sempre o entre, e nunca é o todo, pois a poesia é a soma das partes mais a relação que é determinada entre elas: é um devir-lugar.[...]Assim como o poema que se abre como ferimento, o conto de Rosa rasga a história para revelar que há sim algo sob os relatos dos viajantes europeus: há vozes selvagens que se calam frente à escrita refinada. Essas vozes foram abandonadas outrora e são retomadas para recompor uma cosmogonia que compreende hibridismo, alteridade, ficção e história. A literatura que abre-se a esses esquecidos faz mais que oferecer sua vida e suas histórias, ela oferece seus olhos para que vejamos o mundo lá fora com a alma daqui de dentro: como um animal. Os índios tupinambá viram onça para que suas raízes se tornem menos brancas e mais selvagens, cada vez mais animal. Esse é o destino da literatura: virar onça para poder farejar vestígios e revelar sobrevivências.
Somos todos animais: eis a zoosfera derridiana!